quinta-feira, 15 de abril de 2010

Histórias de amor do caneco

(Deixada pelo Sr. do Sax na minha caixa de comentários)

"O Alexandre O'Neill apaixonou-se um dia pela francesa Nora Mitrani, ela parte para Paris e ele não suportando a distância decide partir para o lado de lá da ausência, mas é barrado no aeroporto, seu pai, muito influente no país pré-74 solicitou às altas instâncias que este não pudesse abandonar o país...e ele, destroçado escreveu este triste lancinante e belo "Adeus Português":




Nos teus olhos altamente perigosos

vigora ainda o mais rigoroso amor

a luz dos ombros pura e a sombra

duma angústia já purificada



Não tu não podias ficar presa comigo

à roda em que apodreço

apodrecemos

a esta pata ensanguentada que vacila

quase medita

e avança mugindo pelo túnel

de uma velha dor



Não podias ficar nesta cadeira

onde passo o dia burocrático

o dia-a-dia da miséria

que sobe aos olhos vem às mãos

aos sorrisos

ao amor mal soletrado

à estupidez ao desespero sem boca

ao medo perfilado

à alegria sonâmbula à vírgula maníaca

do modo funcionário de viver



Não podias ficar nesta casa comigo

em trânsito mortal até ao dia sórdido

canino

policial

até ao dia que não vem da promessa

puríssima da madrugada

mas da miséria de uma noite gerada

por um dia igual



Não podias ficar presa comigo

à pequena dor que cada um de nós

traz docemente pela mão

a esta pequena dor à portuguesa

tão mansa quase vegetal



Mas tu não mereces esta cidade não mereces

esta roda de náusea em que giramos

até à idiotia

esta pequena morte

e o seu minucioso e porco ritual

esta nossa razão absurda de ser



Não tu és da cidade aventureira

da cidade onde o amor encontra as suas ruas

e o cemitério ardente

da sua morte

tu és da cidade onde vives por um fio

de puro acaso

onde morres ou vives não de asfixia

mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

sem a moeda falsa do bem e do mal



Nesta curva tão terna e lancinante

que vai ser que já é o teu desaparecimento

digo-te adeus

e como um adolescente

tropeço de ternura

por ti



Alexandre O'Neill



PS - desculpa ser tão longo, a culpa é do O'neill que não sabe escrever menos..."

2 comentários:

  1. ... que acabou por se tornar o seu poema mais célebre. Coisas...

    Há uma biografia do O'Neil muito muito interessante, é da Maria Antónia Oliveira e foi editada em 2007 pela Dom Quixote em que se dá conta da vida atribulada do poeta e, naturalmente, desse episódio.

    Li-a há pouco tempo, por isso recordo-me bem disso. Embora não haja provas materiais, aparentemente a teria sido a mãe a dirigir uma carta ao Ministro do Interior, apelando ao zelo pela moral e pelos bons costumes que o filho perigaria caso lhe fosse permitido viajar. Isto veio tornar ainda mais difícil a relação de O'Neill com os pais. Não obstante, mais tarde, a mesma senhora enviaria nova missiva, novamente apelando aos valores tradicionais da família, o que pôs termo ao cárcere a que a PIDE o teria vetado.

    Outro amor, o de mãe, em tempos outros. Enfim. ;)

    Jinhos.

    P.S. Agora estou a ler as Histórias de Amor do Walzer da Relógio de Água, um livro extraordinário sobre o Amor e a vida em caleidoscópio.

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